Cultura é o que se diz... quando a Fulana não está por perto
Entre o que se prega e o que se cochicha no portão de embarque, o verdadeiro DNA organizacional se revela.
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Não sei.
Num mundo em que ninguém mais ouve ninguém, às vezes me dou o direito de escutar. Escutar de verdade. Não com os ouvidos da fofoca, mas com os da escritora que habita em mim. Porque quem escreve, vê. E quem vê, sente. E quem sente... não consegue evitar.
Gosto de observar. Gente em restaurante, em fila de farmácia, supermercado. Mas meu lugar favorito para escutar é o aeroporto. Lá, as pessoas estão com pressa, cansadas, vulneráveis. Quando estão acompanhadas, usam aquele tempo morto para o que chamam de “conversas importantes”.
Hoje, peguei uma dessas conversas. Sem querer querendo.
Uma moça esbelta, moderna, de cabelos cacheados e postura de quem sabe o que faz, disse em tom confiante: “Eu vou fazer a apresentação porque preciso de velocidade, mas sei que a Fulana vai ficar chateada. Então vou falar que foi você que pediu. Pode ser?”
Assumi ali o apelido: Cachinhos Confiantes.
Ela falava com um homem de voz grave e presença calma, claramente alguém com autoridade, mas que não impunha medo. Chamei de Bota Fogo: aquele tipo que apazigua jogando lenha na fogueira certa.
Ao lado, outro integrante da trupe permanecia quieto. O rosto enterrado no celular, mas atento o suficiente para emitir um “hmm” estratégico. Apelidei de Caladão Zumbi.
A conversa seguiu.
“Ela veio me falar que está sobrecarregada. E o pior: disse que por ter trabalhado dois finais de semana seguidos, já quer organizar as férias”, desabafou Cachinhos Confiantes.
Nesse momento, Caladão Zumbi ergue os olhos do celular: “Ah, pronto. Estou há três anos sem férias. Agora porque ela trabalhou dois fins de semana, já quer sair?”
Voltou ao celular. Mas o recado estava dado.
Cachinhos respondeu com firmeza: “O problema não é ela querer compensar. Isso é normal. O problema é o tom. Ela fala como se a gente estivesse devendo algo a ela. Como se fosse vítima.”
Bota Fogo assentiu, compreensivo: “Total. Tem gente que se coloca como se o combinado fosse injusto. Mas é o trabalho dela, né?”
Depois de alguns suspiros e alinhamentos estratégicos sobre quem “pode dizer que pediu o quê”, Cachinhos confidenciou: “Eu nem gosto dessa história de ‘cultura de dono’, sabia? Mas uma coisa é não se sentir dono... outra coisa é não se importar com nada.”
Bota Fogo respondeu com um “claro” automático. Caladão Zumbi, sem olhar, balançou a cabeça.
A chamada para o voo foi anunciada. Eles se levantaram. Eu fiquei triste. Queria saber mais. O que mais teria feito a Fulana Chateada, a personagem invisível e pivô do drama?
Não é só sobre fofoca. É também sobre cultura.
Essas conversas de aeroporto revelam o que os powerpoints não mostram: os pressupostos invisíveis, como diria o Schein no seu famoso iceberg.
Sim, aquele iceberg, onde o que aparece são só os artefatos: a sala colorida, o happy hour, a “política de portas abertas”. Abaixo disso, temos os valores declarados. E, lá no fundo, quase no abismo, os pressupostos básicos. O que realmente dita o comportamento. O que todo mundo sabe, mas ninguém precisa dizer.
Aproveitando a elucubração para colocar a referência desse artigo do Schein sobre isso e outras ideias poderosas que ele deixou como legado para o estudo de culturas organizacionais. Rest in peace, Professor.
Voltando.
O problema da Fulana talvez nem seja o tom, o pedido de férias, ou os fins de semana. O problema é que, talvez, ela tenha desrespeitado uma regra silenciosa da cultura onde trabalha: não demonstre cansaço.
Minha hipótese: Trabalhar muito? Ok. Se sentir sobrecarregada? Talvez. Falar sobre isso? Aí não, né...
Pior ainda: parecer que está “cobrando algo”, como se a empresa devesse alguma reparação. Isso mexe com o código moral de ambientes que confundem cultura de dono com dono da cultura.
Esses dias, fui dar uma aula sobre esse tema de cultura organizacional. Estava preparando o conteúdo, revisando os frameworks clássicos, quando me vi lembrando justamente dessas camadas do iceberg. Lembrando, também, de todas as culturas que já vivi.
Culturas jurídicas, onde o saber tem cabelo branco.
Culturas familiares, onde confiança pesa mais que resultado.
Culturas de causa, onde a missão justifica as jornadas.
Culturas de alta performance, onde não há tempo para feriados.
Culturas colaborativas, e também as de controle absoluto.
Em todas elas, existia um surto coletivo pactuado: uma verdade absoluta dentro daquele microcosmo.
Mas o que me fascina é que essas verdades são, na verdade, verdades contextuais. Relativas. E muitas vezes, perigosamente confundidas com valores pessoais.
Quando isso acontece, o iceberg vira prisão. E quem aponta a correnteza vira inimigo.
Eu não conheço a Fulana Chateada. Mas torço por ela.
Torço para que ela possa tirar suas férias. E mais que isso: para que possa expressar suas necessidades sem ser lida como ingrata, vitimista ou “pouco comprometida”.
Torço para que ela encontre espaços onde seja possível ser humana antes de ser produtiva. Talvez, não ali.
Torço, por fim, para que a gente escute mais as conversas com menos julgamento e mais curiosidade.
Falando em escuta...ainda vou criar esse negócio de conversas.
Talvez uma escola. Um laboratório. Um estúdio. Um podcast eu já tenho. Mas o que eu queria mesmo é um mundo onde fosse mais fácil conversar com gente do que com a inteligência artificial.
Porque, convenhamos, é mais fácil ajustar o prompt do que alinhar culturas.
E eu com isso?
Perceba a cultura na qual você está inserido.
Perceba como ela te molda.
Perceba que ela pode ser invisível, mas te influencia todos os dias.
Perceba que existem outras. Sim, muitas outras.
Perceba que o que é “certo” ou “errado” pode ser só um acordo silencioso entre pessoas que compartilham o mesmo surto.
E se quiser mesmo viver com mais sanidade (ou pelo menos com menos exaustão), talvez valha abrir espaço para conversas reais. Escutar o outro. Reconhecer as diferenças. Aceitar que sua cultura pode não ser melhor, só é a sua.
Em tempos de bolhas, tribalismos e promessas de pertencimento imediato, respeitar culturas diferentes ( inclusive organizacionais) pode ser um ato de coragem. E também uma chance de conexão.
Quando a gente sai do automático e olha com curiosidade para o que o outro valoriza, conversas surgem. Pontes se constroem. E, às vezes, a gente até descobre que Fulanas Chateadas só estão cansadas. Como você. Como tantos.
Então, com carinho:
Acorda do seu surto coletivo. Olha em volta. Tem vários surtos coletivos rolando ao mesmo tempo.
Por hoje, é isso, Elucubradores.
beijos da Tami e não deixe de ler a próxima parte!
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Criei uma meta. Porque, veja bem, sou cria da cultura das metas. Estou toda imersa nesse surto coletivo de milestones, OKRs e senso de realização. E a meta é clara: 1.000 assinantes até dezembro.
Sim, mesmo no “sabático mode”, sigo presa ao vício de ter que performar até quando estou descansando. Não consegui resolver isso na terapia. Ou seja: preciso de ajuda.
Ajuda essa pobre vítima da sociedade meritocrática que precisa de números para validar sua existência. Só você pode salvar essa alma overachiever que finge não ligar pra nada mas que secretamente ama um número redondo.
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Maravilhosa como sempre!
Estou impactada e preciso de tempo para assentar o turbilhão gerado na minha mente depois desta leitura... Tem uma frase até que conhecida que diz algo sobre a honestidade é o que fazemos quando ninguém está vendo. E a partir dessa vivência e elucubração que você fez, me pego refletindo que a cultura real é aquela dos pequenos grupos, clãs, tribos e afins. São nesses momentos que a cultura intrínseca de cada um se apresenta!!! Preciso de tempo... rsrs